terça-feira, fevereiro 05, 2008

LEI N° 3.353 DE 13 DE MAIO DE 1888 - A LEI ÁUREA - 120 ANOS




do ensaísta e professor Morche Ricardo Almeida



Chegamos ao centésimo vigésimo ano depois da assinatura da Lei Áurea. Um ano que poderá ou não abrir novos debates sobre a questão dos negros no Brasil. Seria muito digno que os afro-brasileiros tivessem orgulho em homenagear a Princesa Isabel, e toda corte imperial, em seus desfiles carnavalescos, como fez José do Patrocínio.
Patrocínio adianta-se, emocionadíssimo. Ajoelha-se. Beija as mãos da princesa. As palmas se prolongam. Patrocínio fala. Chama-a “a doce mãe dos cativos” (d’Amaral: 124-5, 2001). Seria edificante se o governo federal houvesse reservado, no orçamento da União, verba extraordinária ao “grande feriado” do 13 de maio. Está claro, no entanto, que nem os afrodescendentes sentem orgulho desta data nem o governo federal disponibilizou verba extraordinária para que a data seja amplamente comemorada.
Promulgada e assinada pela Princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888, traz a lei, n° 3.353, em sua estrutura jurídica, o seguinte:


Lei Áurea (13/05/1888)

“Declara extinta a escravidão no Brasil.

A princesa imperial regente em nome de Sua Majestade o imperador, o senhor D. Pedro II, faz saber a todos os súditos do Império que a Assembléia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte:

Art. 1º: É declarada extinta desde a data desta Lei a escravidão no Brasil.

Art. 2º: Revogam-se as disposições em contrário.

Manda, portanto, a todas as autoridades a quem o conhecimento e execução da referida lei pertencer, que a cumpram e façam cumprir e guardar tão inteiramente como nela se contém.
O secretário de Estado dos Negócios d’Agricultura, Comércio e Obras Públicas e interino dos Negócios Estrangeiros, bacharel Rodrigo Augusto da Silva, do Conselho de Sua Majestade o Imperador, o faça imprimir, publicar e correr.

Dado no Palácio do Rio de Janeiro, em 13 de maio de 1888, 66º ano da Independência e do Império.
Carta de lei, pela qual Vossa Alteza Imperial manda executar o decreto da Assembléia Geral, que houve por bem sancionar declarando extinta a escravidão no Brasil, como nela se declara.
Para Vossa Alteza Imperial ver.”

O arcabouço jurídico da Lei Áurea foi construído com os tijolos da fragilidade. Sendo a exceção sua eficácia em revogar as outras vãs tentativas em pôr fim à escravidão no Brasil. Os juristas do Império, que redigiram a Lei de Ouro e entregaram-na nas mãos da filha de D. Pedro II, na ausência deste, para assiná-la, desprezaram o porvir e ignoraram o destino dos escravos que, a partir da lei, ficariam livres da escravidão vigente. Eis a fragilidade legal: libertar os escravos e entregá-los ao deus-dará. A Princesa Isabel, filha do Imperador filósofo, outorgou a legislação libertadora do povo estrangeiro e descendentes transformados em mercadoria em nome do trabalho compulsório no seu aspecto mais repugnante. Sem reconhecer a opressão secular que sua Coroa impôs às centenas de famílias do continente africano. Mas, finalmente, a lei de 13 de maio saiu; com suas imperfeições, saiu. Um 13 de maio difícil de ser engolido, por falta de identidade no povo a quem propunha libertar da escravidão, que trocou o 13 de maio por 20 de novembro. Pois havia mais verdade na coragem de Zumbi (assassinado em 20 de novembro de 1695, final do século XVII) se comparada à coragem da Princesa Isabel ao assinar a lei e publicá-la no festivo 13 de maio de 1888, final do século XIX. A pena a serviço dos interesses do Império não tinha forças nem no tinteiro tinta para garantir dignidade aos que deixavam a condição de escravo e, a partir daquele 13 de maio, iria aprender a ser livre, sentir o gostinho da liberdade.
Que liberdade?
Muitos questionamentos foram feitos ao analisar tal lei, pois ela é simples e não trouxe nenhuma vantagem aos que, até 1888, serviram de base na construção econômica, social e cultural do Brasil. O valor que se deu ao africano seqüestrado de sua terra natal, e mesmo ao nascido no Brasil, é o mesmo valor garantido pela lei n° 3.353 de 13 de maio de 1888, mais conhecida como Lei Áurea.
Os cento e vinte anos passados desde a assinatura de tal lei não trouxeram aos afrodescendentes os privilégios da liberdade. Tiveram os negros que saírem dos seus locais de nascimento ou de onde trabalhavam, em busca de um espaço onde garantissem sua sobrevivência. Não bastasse a falta de apoio do governo, ainda tiveram que enfrentar a concorrência para conseguir trabalho, concorrência desleal. Pois os que se apresentavam para trabalhar nas indústrias que estavam surgindo no Brasil eram europeus vindo de regiões onde a indústria já estava consolidada e conheciam o trabalho com máquinas. Os afrodescendentes, agora livres das correntes e das senzalas, não estavam livres da mendicância, da péssima moradia e da disputa por espaço. Saíram da lavoura da cana-de-açúcar, do café, das minas de ouro. Como concorrer com o proletariado europeu que chegava aos milhares na terra sem escravidão? Mão-de-obra patrocinada pelo governo imperial.
Poderiam os ex-escravos terem garantido o direito a uma indenização por trabalhos forçados, seqüestro, humilhações e tantas outras questões quantas fossem citadas devido aos mais de 300 anos que serviram ao governo português e brasileiro, após sua Independência em 07 de setembro de 1822? Poderiam. No entanto, em uma manobra traiçoeira, como sempre fizeram os dirigentes políticos do Brasil, na pessoa de Rui Barbosa, preferiu transformar em fumaça a história dos povos africanos e afro-brasileiros.

E, de novo, um mês depois, no dia 14 de dezembro de 1890, quando Rui Barbosa quis pôr um fim nas pressões "indenizistas", simplesmente mandando queimar as provas de propriedade existentes no Ministério da Fazenda, o presidente da Confederação Abolicionista, João Clapp, será citado no próprio texto da Decisão Ministerial como membro principal da comissão encarregada dos trabalhos de "queima e destruição imediata" dos documentos (SILVA).


Rui Barbosa, abolicionista. A Águia de Haia. O ilustre representante do Brasil em Haia, Holanda, na Segunda Conferência da Paz, que tinha como objetivo estabelecer os novos fundamentos da ordem internacional. Este mesmo Rui Barbosa não pensou duas vezes ao ordenar a queima de documentos históricos do Brasil.
Documentos que garantiriam ao povo negro o reconhecimento de seu trabalho quem sabe até alguma indenização por tudo que acontecera.
A abolição da escravatura, já avançara consideravelmente no Brasil, em várias regiões, antes mesmo do dia 13 de maio de 1888. A princesa Isabel assinou um documento que libertou os escravos de alguns senhores resistentes às lutas abolicionistas.
Os afrodescendentes continuaram à luta. Essa nova luta não deixou de ser desigual como havia sido durante todo o período de escravidão. Ser livre, mas não ser considerado cidadão. Ser o negro, o analfabeto, o desempregado, o sem teto, o sem terra. Continuavam os afro-brasileiros às margens da sociedade dominante, agrícola e industrial do início do século XX.
Esses quase 500 anos da presença do negro, no Brasil, foi apagado com a atitude dos subordinados a Rui Barbosa, o “abolicionista”. A história oral e alguns documentos e utensílios que sobreviveram a esta infâmia permitiram que um quebra-cabeça fosse sendo montado com muita dificuldade, pois muitas peças tiveram e tem que serem reconstruídas apenas do imaginário, e outras ainda estão escondidos por alguns que insistem em brincar de esconde-esconde com a história do Brasil.
Neste resgate histórico, onde a figura principal é o africano e seus descendentes, encontramos nomes ilustres que foram e são responsáveis pela construção da cultura geral do Brasil. É mister que nem todos se destacam nacional ou internacionalmente. Indiferente de sua origem étnica, todos são responsáveis pela construção da história; mas, os que vêem seus nomes transformados em exemplos para os outros, são poucos.
No início da história colonial brasileira, surge entre tantos negros africanos ou afrodescendentes, um que tem seu nome como maior símbolo de luta e resistência contra o sistema de coisas que vivenciava juntamente com seus contemporâneos. Foi Zumbi que se tornou o nome maior da luta negra contra a escravidão. Não se pretende analisar a história de Zumbi, mas apenas para registrar, por que Zumbi? Zumbi foi mais um líder do quilombo de Palmares. E os outros líderes quilombolas? Não tiveram eles também o poder de representar a luta contra a opressão dos seus algozes?
Representa no Nordeste açucareiro, Zumbi, a luta do povo humilhado e desrespeitado em seu direito mais fundamental: a liberdade. Os negros têm seu herói, e a luta dele (Zumbi) em um período onde “a Coroa, insistia em justificar a escravidão incluindo o negro na categoria de coisa ou de bicho”. (Oliveira, p.20, 1999). Significa para a sociedade de hoje que, na luta por direitos, não pode retroceder em qualquer situação.
Em outro momento histórico, encontramos Chica da Silva, mulher negra que, segundo historiadores, esteve à frente de sua época. Seu exemplo reflete o poder da mulher na luta contra a situação em que a mesma foi colocada em uma sociedade machista e escravagista. Não são poucas as heroínas negras nestes 500 anos.
Nomes de negros que ajudaram a construir a história do Brasil não são poucos. Ainda no período colonial brasileiro, encontra-se, nascido na primeira metade do século XVIII, e que se destaca no plano artístico, Francisco da Costa Lisboa, o Aleijadinho. O tempo fez surgir outros milhares de nomes ilustres de afrodescendentes citados por Nelson Silva de Oliveira em sua obra “Vultos Negros na História do Brasil”: Francisco Manoel das Chagas, o escultor, Crispim de Amaral, José Teófilo de Jesus, Estevão Roberto Silva, Joaquim Pinto de Oliveira Thebas, José da Paixão, Gabriel Joaquim dos Santos, Agnaldo Manoel dos Santos, Valentim da Fonseca e Silva, Mestre Valentim e tantos outros.
Na política, arquitetura, esportes, educação, música, teatro, literatura, medicina e nas mais diferentes áreas do conhecimento encontram-se os afro-brasileiros. Lutam, e ainda continuam lutando, como lutou o primeiro que se lançou ao mar para fugir na travessia do Atlântico. Também os que se embrenharam nas matas desconhecidas para fundarem quilombos de resistência, os que sicretizaram santos católicos aos orixás para manterem presente sua religiosidade. Neste capítulo, os que escreveram denúncias de um país que nunca respeitou seus filhos, a exemplo do escritor Lima Barreto, nos livros Os Bruzundangas, o Triste fim de Policarpo Quaresma e tantos outros títulos. A força dos negros é a mesma força de Zumbi, desde que o primeiro navio negreiro aportou em terras da colônia portuguesa, passando por todo período colonial, imperial e republicano.
Dizer que vivem-se 120 anos de “liberdade” é ser um inocente útil. A escravidão perdeu o pavor, mas permanece à memória. Esta memória continua ditando as regras das relações étnicas no Brasil. Espera-se, em breve, poder viver em um país multiétnico em que haja solidariedade.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Lima. Os Bruzundangas. São Paulo: Ática, 2002. (Série Bom Livro)

______________. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: Ática, 1995. (Série Bom Livro)

BONAVIDES, Paulo & VIEIRA, R. A. Amaral. Textos políticos da história do Brasil. Fortaleza: Imprensa Universitária da Universidade Federal do Ceará, s/d, p. 788 In: CALDEIRA, Jorge e outros. CD-ROM Viagem pela História do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.

d`AMARAL, Márcio Tavares. Rui Barbosa. São Paulo: Editora Três Ltda, 2001. (A vida dos grandes brasileiros – 1)

OLIVEIRA, Nelson Silva de. Vultos negros na história do Brasil. Rio de Janeiro: CEAP. 1999